Agência Brasil- Tania Rêgo
Só é preciso março, o intitulado mês das mulheres, despontar nos calendários que uma série de estatísticas e casos sobre feminicídio tomam os noticiários. A série de números e histórias tem até boa intenção: escancarar a realidade. Mas, no final das contas, trazem a frieza dos dados, normalizam uma epidemia que vem matando as mulheres e fazem parecer que elas não têm rosto, família e nem história.
Estatísticas sem rostos
É como se Mainara Maria, de 23 anos e grávida, morta a tiros e golpes de faca por um suspeito ainda não identificado em Cândido Sales, na Bahia, não tivesse rosto. Como se Ilana Ferreira do Nascimento, encontrada sem vida no bairro de Cajazeiras, na casa onde morava com o então namorado e principal suspeito, não tivesse uma história. Ou como se Marília de Souza Almeida Pereira, de 39 anos, assassinada a golpe de faca na Chapada do Rio Vermelho, não tivesse uma família.
Passos em rotina de medo
Vitória Regina de Sousa, de 17 anos, ao menos ganhou um rosto nos noticiários, porque, por uma infeliz coincidência, o caso dela calhou de acontecer próximo ao Dia da Mulher. Seus amigos e familiares foram ouvidos e tiveram a chance de descrevê-la como uma jovem feliz e trabalhadora, a caçula de seis irmãos, que havia acabado de conseguir um emprego. Foi justamente no seu quarto dia de trabalho que ela desapareceu. Uma semana depois, foi encontrada morta na Região Metropolitana de São Paulo.
A jovem deixou o shopping onde trabalhava e seu retorno para casa foi um caminho de medo, algo vivenciado diariamente por muitas mulheres. Chegou a enviar mensagem para uma amiga revelando preocupação com a presença de dois homens no ponto de ônibus e depois com a abordagem de outros desconhecidos. Essa rotina de temor e preocupação é vivenciada por muitas mulheres na rua e até em casa.
Quando o agressor é quem deveria proteger
Não é novidade que, no geral, o principal agressor é o companheiro ou ex-companheiro da vítima. Pais, padrastos e até filhos também aparecem entre os responsáveis pelos ataques, e tornam o lar um ambiente inseguro para milhares de mulheres.
Violência a olho nu
Em contraste a essa enxurrada de estatística e essa suposta intimidade do lar, está o silêncio. A maioria das agressões contra mulheres não acontece em segredo. Familiares, amigos e até desconhecidos presenciam os crimes, mas o medo e a descrença na Justiça, muitas vezes, impedem a denúncia. E aqui um outro ciclo de violência ganha força: crianças que crescem em lares violentos carregam traumas que podem refletir na manutenção desse padrão violento.
Avanço sem sair do lugar
Entre os estudiosos e amantes desses números, um fenômeno chama atenção: mesmo com o endurecimento da legislação, os casos de feminicídio e violência doméstica seguem em alta. A Lei do Feminicídio, por exemplo, foi sancionada em 2015, passando a classificar o assassinato de mulheres por violência de gênero como crime qualificado. Nove anos depois, a Lei 14.994/24 aumentou a pena para feminicídios, que passou a variar entre 20 e 40 anos de prisão.
A promotora Sara Gama, coordenadora do Núcleo de Enfrentamento às Violências de Gênero e em Defesa dos Direitos das Mulheres (Nevid), defende que a complexidade do problema vai de falhas na Justiça ou na proteção a essas mulheres. “Quando a gente tem uma lei que está ficando mais contundente, mais severa, mais forte, e ao mesmo tempo a gente tem um aumento da violência, é um fenômeno que é muito mais social do que jurídico. Então, a gente tem que analisar o que exatamente está acontecendo em termos de sociedade”, afirma.
Mas, enquanto isso, casos como o de Vitória, Mainara, Ilana e Marília continuam a se repetir diariamente impulsionados por uma epidemia de violência contra as mulheres. Para provar isso, a frieza deles, os números: foram 1.128 vítimas de feminicídios no Brasil e mais de 21 milhões de brasileiras sofreram algum tipo de violência no Brasil. É muito mais do que os casos anuais de câncer de mama (73 mil), de colo do útero (17 mil) e até infarto (400 mil). É a verdadeira epidemia brasileira.